O juramento dos Horácios

O juramento dos Horácios

Tempo de leitura: 14 minutos

O juramento dos Horácios (1785) ou Le serment des Horaces“, do pintor francês Jacques-Louis David (1748-1825) é considerada uma das maiores obras-primas do neoclassicismo tanto pelo seu estilo quanto por sua representação patriótica.

David aos 36 anos, Membro da Academia Real de Pintura recebeu uma encomenda direta do rei Luís XVI (1774-1793). Encontra-se no Louvre desde 1794, pois como fazia parte da coleção real durante a revolução francesa foi confiscada pelo “Diretório” (governo nacionalista transitório) onde tornou-se um bem nacional.

Autorretrato de Jacques-Louis David (1748-1825), realizado em 1794. Museu do Louvre.

Pintada por David entre 1784 e 1785 quando estudava em Roma no “Palazzo Costanzi“. Trazida a Paris em 1785 para fazer parte do “Salon” de exposições de pinturas e esculturas do Louvre, onde foi um dos maiores sucesso nessa época pré-revolução.

É uma pintura a óleo sobre tela com dimensões gigantescas: 3.30 metros de altura por 4.25 metros de largura.

David como deputado da Convenção Nacional e aliado ao partido de Robespierre (1758-1794) votou pela pena de morte de Luís XVI (1774-1773) que o havia consagrado como o grande artista neoclássico do momento. Uma traição política.

Aproveitando-se do prestígio que sua pintura alcançou no “Salon” foi usada mais tarde como propaganda política dessa nova filosofia definida a partir das lições morais da antiguidade onde ele e outros pintores eminentes da época usaram a iconografia (temas) da antiguidade para representar a virtude, a moralidade e o dever patriótico.

Em 1794 quase foi guilhotinado, mas conseguiu ser perdoado pelos membros do Diretório. Em1798 conseguiu atrair a atenção do ainda general Napoleão Bonaparte, onde imediatamente tornou-se seu pintor favorito.

David seguindo a “onda” de quem governava, mais uma vez mudou de partido, de ex-monarquista e ex-revolucionário passou a servir agora ao Império.

Em 1804 foi nomeado o primeiro pintor de Napoleão Bonaparte I (1804-1814/1815), onde ilustrou toda sua glória e poder em composições notáveis, principalmente com a obra: “Coroação de Napoleão e de Josefina” (análise no link).

“A Coroação de Napoleão e Josefina” ( 1806-1807). Museu do Louvre.

História do combate entre Horácios e Curiácios.

É o tema da lendária Roma Antiga, época de Túlio Hostílio, terceiro rei de Roma (663 – 641 a.C.), onde trigêmeos Horácios representantes da cidade de Roma lutariam por uma causa em comum contra os trigêmeos Curiácios, representantes da cidade de Alba Longa (cidade hoje desaparecida junto ao lago Albano).

Roma e possível região de Alba Longa, cidade desaparecida. Google maps.

Segundo a lenda, os governantes das duas cidades, Roma e Alba Longa em comum acordo decidiram resolver um problema de fronteira através de um combate de vida e morte com duas tríades representantes de cada cidade.

Monte do “Castel Gandolfo”, com vista para o Lago Albano (Lazio, Itália). Foto: George McFinnigan.

Acharam que por se tratar de uma causa pequena, essa seria a melhor solução para se evitar grandes perdas humanas para os ambos os lados, no caso de uma guerra.

Mas a situação era complicada, visto que os combatentes convocados haviam entre eles laços familiares e afetivos. Um dos irmãos Horácios era casado com a irmã dos Curiácios, chamada Sabine, e uma das irmãs dos Horácios, chamada Camila era noiva de um dos Curiácios. Portanto, qual fosse o resultado da luta, a tristeza e tragédia atingiria ambas as famílias.

De acordo com o que foi escrito por Tito Lívio (ca. 59 a.C.-17 d.C.) em seu livro “A História Romana” (livro I) a luta tão logo começou os três irmãos Curiácios foram rapidamente dominados e feridos, enquanto que do lado dos Horácios, dois foram mortos.

“Le combat des Horaces et des Curiaces” (1798), de Fulchran-Jean Harriet (1776-1805).
Escola de Belas Artes de Paris.

Os Curiácios apesar de feridos estavam seguros na vitória e saíram em perseguição do sobrevivente, Publius Horatius, que se vendo cercado procurou fugir. Ao tomar uma certa distância, notou que cada um dos Curiácios tinham uma certa dificuldade em correr devido aos graves ferimentos.

Aguardou então que se separassem para matar sem muita dificuldade um de cada vez, liquidando assim com a questão e os trigêmeos Curiácios.

“Horace venant de frapper sa sœur” (ca. 1750 a 1754), de Louis-Jean-François Lagrenée  (1725–1805).
Museu de Belas Artes de Rouen.

Ao regressar a Roma, Publius Horacius vendo sua irmã Camila chorando e insultando-o pela morte de seu noivo Curiácio, pegou a espada e a golpeou mortalmente dizendo: “Vá, com o seu amor louco, junte-se ao seu noivo, você que está esquecendo seus irmãos mortos… Que assim pereça toda mulher romana que se atrever a chorar a morte de um inimigo”.

Condenado à morte mais tarde foi absolvido perante a Assembleia do Povo.

O juramento dos Horácios.

Se o combate aparece em muitas fontes literárias, o juramento é na verdade uma invenção do pintor. É provável que David pertencesse a maçonaria e tenha se inspirado nos procedimentos do juramento com espadas para os iniciantes que entravam na ordem que tem como significado expressar a coragem, a justiça, orgulho e a defesa de uma causa.

O prenúncio do lema da liberdade, igualdade e fraternidade da primeira República francesa.

David poderia ter escolhido várias outras passagens desse combate mas preferiu destacar os trigêmeos Horácios jurando ao Pai (= Pátria), vencer ou morrer em nome da liberdade, da lealdade e da justiça. Um juramento cívico fortemente patriótico.

Composição.

David quebra com as regras usuais da composição ao descentralizar os principais personagens em planos diferentes. Ele também ignorou os princípios da Academia ao tratar suas cores e pinceladas de uma forma relativamente plana.

O juramento dos Horácios
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

A cena se passa no interior de um pátio pavimentado de uma residência de moradores romanos, sendo o espaço representado fechado e paralelo ao plano da pintura. O fundo escuro concentra toda a atenção dos personagens no primeiro plano.

Triângulos:

A composição é baseada no número três: são três grupos de personagens inscritos nos três grupos de arcadas presentes ao fundo. À esquerda, os três irmãos; no centro o pai e à direita, três mulheres (três irmãs ou a mãe e duas irmãs).

David usando essa regra dos três apresenta uma composição em perfeito equilíbrio e estabilidade.

O juramento dos Horácios
Três arcadas delimitadas por três grupos de personagens.
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

Em boa parte das mitologias conhecidas, a simbologia do número três tem um significado específico.

No Cristianismo representa a Santa trindade: o Pai, ​​o Filho e o Espírito Santo.

Na mitologia grega, as três irmãs Moiras: Cloto, Láquesis e Átropos, são entidades sombrias que determinavam o destino dos deuses e dos seres humanos elaborando, tecendo e interrompendo o fio da vida de todos.

Na mitologia romana, as três Graças, Tália, Eufrosina, Aglaia ou Cárites (mitologia grega), deusas dotadas de beleza e virtudes.

David adotou uma posição triangular para os trigêmeos Horácios. Representando a força, coragem e principalmente da união do grupo, onde cada um expressa seu espírito de honra, lealdade e patriotismo.

O juramento dos Horácios
Três irmãos Horácios representando a união do grupo.
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

O pai no centro, também faz parte desse jogo de três, pois segura as três espadas que vai entregar aos seus três filhos para lutarem. Simbolicamente ele é a Pátria romana e os filhos, o povo.

O juramento dos Horácios
No centro, o Pai distribuindo as três espadas para os seus filhos, (alegoria da Pátria romana).
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

As três mulheres da direita e uma criança foram colocadas para dar sequência a composição (como nas histórias em quadrinhos, uma leitura da esquerda para direita). Estão visivelmente desoladas com a ideia do combate e do resultado que será irremediavelmente trágico.

Existe uma perfeita união feminina de infortúnio e solidariedade. David não definiu exatamente quem são as mulheres, pois pode ter retratado a mãe dos três Horácios e suas duas irmãs ou simplesmente as três irmãs.

Sabemos o nome de uma delas, Camila, talvez a mais desolada da esquerda olhando para o chão, sendo reconfortada por uma irmã (ou mãe) que a consola colocando seu rosto sobre a sua cabeça. E como vimos mais acima, após o combate Camila foi assassinada pelo seu irmão sobrevivente Publius Horacius.

As duas mulheres bem à esquerda também foram retratadas numa composição piramidal (triangulo rosa) segundo a regra dos três que David adotou desde o inicio.

O juramento dos Horácios
À esquerda, duas irmãs e a mãe dos combatentes ou três irmãs desoladas pelo combate que vai acontecer.
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

A terceira irmã (ou mãe) dos Horácios que aparece ao fundo protegendo duas crianças (filhos ou netos?) tem na sua composição triangular uma ligação ao cristianismo, através da figura da Santa Trindade (triângulo em amarelo).

Linhas:

É de se notar na pintura de David, uma dicotomia característica do neoclassicismo onde de imediato vemos a presença de dois grupos: os homens, à esquerda, e as mulheres, à direita. Caracterizado por linhas diretrizes: linhas retas para os homens e linhas curvas paras as mulheres.

O juramento dos Horácios
Linhas retas para os homens e linhas curvas para as mulheres.
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

Os rostos e olhares dos homens (círculos em vermelhos) estão traçados numa mesma linha horizontal, paralela a linha central do quadro (linha mediana) que traça a altura do braço do irmão de capa branca.

As linhas retas dos homens estão imbuídas de determinação, força e patriotismo, enquanto que as linhas curvas das mulheres estão caracterizadas pela tristeza e melancolia, por causa da partida de seus familiares.

Perspectiva com um ponto de fuga (PF):

perspectiva com um ponto de fuga (PF), também conhecida como perspectiva renascentista foi o primeiro método de perspectiva exata que tem como função estabilizar a composição.

A partir da escolha do ponto de fuga na linha do horizonte, na qual convergem retas paralelas, são traçadas várias linhas diagonais para provocar uma sensação de profundidade para a composição.

David traçou suas linhas construtivas partindo de um ponto de fuga (PF) marcado no centro do quadro, justamente sobre uma das mãos do Pai/Pátria. A partir desse ponto, toda a atenção da cena ficou concentrada nela, e principalmente sublinhada pelo alinhamento dos rostos dos três filhos e do pai.

O juramento dos Horácios
Ponto de fuga (PF) no centro, linha do horizonte e suas diagonais construtivas.
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre

Nessa obra de David, se analisarmos a composição do espaço interior, com suas colunas, arcadas e piso de pedra encontramos elementos que nos faz acreditar que a cena se passa na mansão de um nobre romano.

É precisamente nesse desenho realizado com ajuda da perspectiva renascentista (com um ponto de fuga) que o conjunto arquitetônico encontra-se equilibrado e nas boas proporções.

Cores:

Os homens se vestem com cores vivas, as mulheres com cores opacas. A mensagem de David é clara, o grupo dos homens vai defender a causa de Roma, com o grupo de mulheres a ideia é relevar os interesses privados de emoções sentimentais e os laços familiares.

O vermelho do primeiro filho é o ponto de partida da pintura. Um vermelho forte e contrastante com o vermelho da capa do pai, personagem central da trama.

O juramento dos Horácios
“O juramento dos Horácios” (1785), de Jacques-Louis David (1748-1825). Museu do Louvre.

O branco do vestido da última mulher da direita contrastando com a cor branca da capa do primeiro filho da esquerda, a coberta vermelha da poltrona da segunda mulher com o vermelho da capa do pai, o azul dos vestidos de duas mulheres, com o azul dos trajes dos homens, cores balanceadas de forma a proporcionar equilíbrio para a composição.

As três espadas brancas sobre o fundo escuro tornou-se o principal ponto de atenção do observador e o ponto de fuga para a perspectiva.

Significados:

O vermelho significa força, virilidade, poder, ação, combate e coragem e foi essa cor que David escolheu como principal para representar sua ideia de patriotismo e lealdade a Pátria.

O branco é um símbolo de pureza, candura e divindade encontra-se na obra de forma bem visível na veste da mulher da direita mesmo que em contraponto aparece também no primeiro combatente para dar um significado de proteção divina, que por estar em destaque pode ser o filho mais velho que sobreviveu, Publius Horatius.

O azul se refere a sabedoria, virtude, fé e paz. Novamente o primeiro Horácio da direita concentra essas três cores: azul, branco e vermelho, cores que apesar de já terem sido usadas nas vestimentas dos guardas franceses desde a época de Henrique IV (1589-1610) foram posteriormente adotadas pelo general La Fayette (1757-1834) durante a Revolução Francesa nos cocares tricolores dos militantes e onde em 14 de fevereiro de 1794 foi usada pela primeira vez como as cores da nova bandeira nacional que era branca.

Bandeira Nacional Francesa. Foto: Wikimedia Commons.

David deixou claro para nos observadores que primeiro irmão da direita é o mais importante, pois foi representado como mensageiro combatente de um ideal patriótico usado mais tarde como tema pelos revolucionários franceses, por esses ideais cívicos e nacionalistas.

Com essa análise fica fácil entender porque o Juramento dos Horácios foi considerado um símbolo chave da Revolução Francesa naquela época.

Pintura moral:

Este tema, inspirado da história de Roma e também em peças de teatros clássicos, como: Horácio, de Pierre Corneille (1606-1684) que explora a exaltação da virtude, do auto sacrifício e do patriotismo, qualidades essas que serão defendidas pelos revolucionários.

Essa ideologia é semelhante a dos filósofos do Iluminismo como: Denis Diderot (1713-1784), que defendia a pintura moral e buscava na Antiguidade o modelo de uma nova sociedade.

Localização da obra:

Departamento de Pinturas.

Ala Denon, nível 1, sala 702, sala Daru, neoclassicismo.

Dimensões da obra: 3,30 m x 4,25 m (sem moldura).

“O juramento dos Horácios”. Ala Denon, nível 1, sala 702, sala Daru, neoclassicismo.

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Fontes:

  • Le Serment des Horaces“, no site Museu do Louvre.
  • “Catálogo de pinturas do museu do Louvre”, de I. Compin e N. Reynaud (École française Paris, 1972).
  • Horace et les Curiaces“, de Georges Dumézil, La Pléiade (Ed. Gallimard, 2002).
  • Le Serment des Horaces“, no site Wikipédia em francês.
  • “Le Serment des Horaces, peinture de Jacques Louis David”, no site Encyclopedia Universalis.

8 Comentários


    1. Linda obra. Clara, objetiva e de facil compreensão a analise. Muitissimo obrigado.

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  1. Tom

    Sua análise é brilhante. Fiquei fascinada. Gostaria que conhecesse o meu site virusdaarte.net

    Peço-lhe permissão para publicar parte do seu texto sobre O Juramento dos Horácios, dando-lhe a devida autoria e colocando ao final seus dados e e-mail para contato. Estou trabalhando com o Neoclassicismo. Desde já agradeço essa interação tão importante, num país em que a arte significa tão pouco. Conte comigo para difundir o seu trabalho.

    Responder

    1. Maria de Lourdes, fique a vontade em compartilhar o artigo, pois quanto mais pessoas tomarem conhecimento dos nossos trabalhos, mais pessoas serão beneficiadas com a beleza e os significados que a arte representa no universo, seja qual for o suporte: pintura, escultura, música, dança… Um dos meus objetivos em divulga-las nesse meu site. Abraços!

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  2. Obrigado, muito bom esta adquirindo esse conhecimento feito com tanto carinho!

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